Discurso PR Dr. José Ramos Horta, 28 de Novembro de 2022

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G-NEWS (Manatuto) – Discurso à Nação no 47º Aniversário da Proclamação da Independência
por José Ramos-Horta, Presidente da República, 28 de Novembro de 2022

Amado povo de Timor-Leste,
Líderes nacionais e comunitários,
Respeitados Enviados Soberanos de todas as nações do mundo, Convidados honrados de Nusa Tengara Timor, Boas-vindas especiais aos estimados convidados que estão entre nós e que serão homenageados hoje:

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  • Governador da NTT, Indonésia, Viktor Bungtilu Laiskodat
  • Gusti I Made Agung Sudjana, Indonésia
  • Major-General Martin John Duner, Nova Zelândia
  • Prof. Noel Bayley, Cardiologista, Melbourne

Hoje, no meu primeiro discurso público à Nação, e enquanto celebramos o nosso Dia Nacional da Independência, centrar-me-ei no Estado da nossa Justiça, um dos pilares da nossa Democracia e Estado.

Faz hoje quarenta e sete anos que uma multidão se reuniu, num dia de sol quente e húmido, no centro de Díli. Um carro chegou ao local e o nosso Primeiro Presidente, Francisco Xavier do Amaral, desceu e avançou para os degraus da porta principal do Palácio do Governo.

Ali tinha sido montada uma pequena mesa e sobre ela estava o texto da Declaração Unilateral de Independência. Num momento solene e histórico, o Presidente Francisco Xavier do Amaral leu a breve declaração que proclamou o nascimento da República Democrática de Timor-Leste.

Nuvens negras de guerra pairavam sobre nós e, naturalmente, o ambiente era muito sombrio. Cinco minutos antes das 18 horas deste dia, há 47 anos, cortámos o cordão umbilical secular que ligava os nossos dois povos, o povo do Sol Nascente, os corajosos descendentes do avô Lafaek, e os corajosos aventureiros, navegadores, comerciantes e missionários portugueses que tinham vindo a terra em Lifau em 1515. Depois de 500 anos da sua presença entre nós, a bandeira portuguesa foi solenemente arreada. Embora fôssemos todos jovens e inexperientes, e os nossos corações sangrassem com sentimentos de abandono por parte das autoridades coloniais, mostrámos grande maturidade e salvaguardámos respeitosamente a bandeira portuguesa ao lado da nossa.

Porque insistimos numa República Democrática? Será que se tratava apenas de uma palavra usada sem abraçar os ideais e o espírito que ela carrega? Ou será que Avô Xavier, Nicolau Lobato e outros acreditavam realmente que o que devíamos construir era um Estado verdadeiramente justo e democrático? Ou será que pretendíamos que essas palavras não tivessem qualquer significado especial?

O Avô Xavier, Nicolau Lobato e todos os outros acreditaram – e hoje continuamos a acreditar – que o povo timorense tem uma missão fundada num espírito democrático sobre o qual devemos construir no século XXI.

Os nossos Fundadores sabiam que precisaríamos de estar sempre vigilantes e de trabalhar para construir a nossa própria cultura especial, baseada no respeito mútuo e que procura sempre alcançar e reafirmar a igualdade, o direito à educação, ao trabalho e ao exercício dos direitos políticos. A vocação e missão especial do povo timorense no mundo reconhece a pluralidade religiosa, a liberdade de pensamento e de expressão como pilares do Estado e da nação.

O Avô Xavi, Nicolau Lobato e Avô Nana e todos os outros líderes são internacionalistas. Eles não acreditavam que nos pudéssemos isolar do mundo.

O 28 de Novembro não marca simplesmente o dia em que o povo timorense procurou e declarou a sua independência. O 28 de Novembro marca o dia em que o povo timorense procurou e declarou a sua independência para formar um sistema de Governo que protegesse a sua liberdade em todos os aspetos e que construísse um sistema económico socialmente inclusivo.

O que devemos retirar daqui é que no nosso sistema constitucional, a inclusão significa que existe um dever constitucional para garantir justiça social.

Criámos um Estado para defender os direitos humanos, a inclusão social, o empoderamento e a igualdade de todos, a liberdade de reunião e de expressão. O nosso desejo era criar um Estado onde as pessoas não tivessem de viver com medo de vigilância injusta, detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, factos ainda muito comuns neste século XXI.

Criámos um Estado para assegurar que as pessoas só vão para a prisão quando for absolutamente necessário, e onde o sistema de justiça procure sempre alternativas antes de ser tomada a decisão final sobre a privação da liberdade. Estes valores de democracia, direitos humanos, respeito pelo Estado de direito e justiça, juntamente com justiça económica e inclusão sustentável, são o que consagrámos na nossa Constituição nacional em 2002, quando a nossa independência foi restaurada.

Não criámos um Estado com o objetivo de criar leis ou práticas injustas. Não criámos um Estado que visse pessoas presas por todo e qualquer delito. Não criámos um Estado que mantivesse as pessoas presas sem julgamento durante meses. Não criámos um Estado para ser preenchido por indivíduos não eleitos que servem em instituições policiais e judiciais sobrepostas que são criadas em modelo de cópia e cola, e espezinhando os princípios sagrados consagrados na nossa Constituição.

Não criámos um Estado onde pessoas presumivelmente inocentes têm de esperar anos para terem o seu dia em tribunal para que as suas acusações sejam ouvidas e onde o processo se alonga sem fim. Não esqueçamos o princípio de que a justiça atrasada é a justiça negada. Fundámos um Estado baseado nos valores universais da democracia e do Estado de direito para que pudéssemos garantir que cada pessoa no nosso país não tem de reviver os pesadelos do nosso passado.

Quarenta e sete anos mais tarde, ou abusamos ou não utilizamos em absoluto as leis que criámos para garantir a nossa liberdade e o pleno respeito pelos direitos humanos. Algumas das nossas leis são aplicadas sem pensamento ou discrição, de uma forma que pode por si só resultar em injustiça. Outras leis parecem permanecer no armário, trazidas apenas para mostrar aos visitantes o que fizemos, mas sem nunca serem realmente implementadas.

Será este o tipo de situação e sistema de lei e justiça por que combatemos e lutámos durante tantos anos? Por vezes, as interações entre a nossa polícia, a sociedade e os meios de comunicação social não parecem ser saudáveis. Isto não só mina o Estado de direito e a democracia, como gera práticas e atitudes em relação aos meios de comunicação social, locais e internacionais, práticas e atitudes que estão longe de ser saudáveis para uma democracia justa.

Tais atitudes estão a minar a nossa sociedade e os nossos valores. O nosso Estado Democrático e os seus valores foram fundados em resposta aos ataques aos nossos direitos e à liberdade de expressão. Não criámos um Estado para que as pessoas se pudessem envolver em respostas mal orientadas relativamente àquilo de que não gostam nos meios de comunicação social.

Por outro lado, não criámos um Estado Democrático para que os jornalistas pudessem ser alistados pela polícia, PCIC, Ministério Público, CAC, ou outros para angariar apoio público, ou para colorir a perceção pública, sobre pessoas que estão a ser investigadas, mas que ainda não foram consideradas culpadas de qualquer crime.

Quando os meios de comunicação são alistados para cobrir prisões ou buscas, e para declarar as pessoas culpadas antes de uma investigação ou julgamento estar concluído, a independência tanto do sistema legal como dos próprios meios de comunicação é minada. Por vezes, pode parecer que os meios de comunicação social se tornaram um mero instrumento nas mãos da polícia ou do Estado.

Tal como as nossas instituições estatais, os nossos meios de comunicação social e jornalistas, são jovens. Tal como todos os outros, podem cometer erros no desempenho das suas funções. Mas será uma resposta adequada a inexperiência ou aos erros legítimos cometidos por jornalistas, que sejam investigados pela polícia?

A polícia deve sempre trabalhar para defender a legitimidade da lei. A lei estabelece procedimentos policiais não só para salvaguardar os direitos dos acusados, mas também para salvaguardar a legitimidade do trabalho da polícia. Quando os procedimentos, por exemplo em casos de prisão e buscas, não são seguidos, ou quando os meios de comunicação social são alistados para declarar as pessoas culpadas antes da conclusão de uma investigação ou julgamento, a legitimidade tanto das investigações individuais como de todo o sistema de justiça é minada. O respeito pelos direitos humanos e a presunção de inocência não prejudicam o trabalho da polícia, mas, de facto, trabalham para construir a sua legitimidade.

Falei acima sobre prisão e detenção arbitrárias. A lei estabelece procedimentos ao abrigo dos quais as pessoas podem ser detidas para serem interrogadas ou quando um caso está a ser investigado. Mas os poderes da detenção preventiva para interrogar um suspeito ou enquanto se aguarda investigação ou julgamento não devem ser tratados como a norma ou como obrigatórios em todos os casos. São, de facto, o último recurso, a ser utilizado apenas quando não existe claramente outra opção disponível para proteger a integridade de uma investigação. São, de facto, o último recurso, da mesma forma que uma sentença penal deve ser o último recurso. O que é obrigatório em todos os momentos é considerar formas de proteger e manter a liberdade do cidadão.

Devemos sempre procurar formas de resolver litígios sem aumentar a população das nossas prisões já superlotadas e sem recursos adequados. A justiça deve ser restaurativa. Devemos assegurar que as medidas que a lei prevê para deter pessoas são utilizadas de forma coerente com os valores democráticos que os nossos Fundadores defenderam. As pessoas não devem ser encarceradas simplesmente porque existe o poder para o fazer.

Como compensar uma pessoa que foi detida por suspeita de ter cometido um crime, que está detida durante meses, ou mesmo anos, sem ser julgada? Detidos em prisões sobrelotadas que não preenchem as condições mínimas exigidas pelos direitos humanos internacionais? Que são tratados como se já fossem culpados? E que têm famílias que enfrentam enormes pressões financeiras como resultado? Como compensar estas pessoas quando eventualmente são consideradas inocentes de terem cometido um crime?

Parece ser o caso que, para uma pessoa em tal situação, é extremamente difícil, quase impossível, desafiar a sua detenção sem julgamento. Não parece haver uma forma expedita ou urgente de levar o seu caso aos tribunais para que o caso seja reavaliado. Mesmo quando um caso chega a uma audiência, e a pessoa se compromete a entregar o seu passaporte e a depositar grandes quantias como garantia pessoal de que o seu pedido de liberdade é negado. E, por vezes, essa negação parece basear-se nas razões mais frágeis e em violação dos valores em que esta nação foi fundada.

Como as Nações Unidas e uma série de pactos internacionais determinam, a prisão preventiva só deve ser utilizada quando outras opções não privativas de liberdade, incluindo a fiança e a apresentação de garantias pessoais, não estiverem disponíveis. A superlotação das prisões e os procedimentos ineficientes de investigação antes do julgamento são razões, dadas pelas Nações Unidas, para que as pessoas não sejam mantidas em prisão preventiva. No entanto, em Timor-Leste, esta mensagem parece não ter sido ouvida.

As nossas prisões continuam a estar sobrelotadas. A prisão de Bécora, construída para acomodar não mais de 250 pessoas, alberga atualmente perto de 400 pessoas. As condições das celas e outras instalações estão muito abaixo dos padrões aceites. Mas a polícia e o Ministério Público continuam a pedir, e os Tribunais na grande maioria dos casos, parecem concordar, que devemos continuar a manter as pessoas em prisão preventiva mesmo quando não há risco de reincidência e as circunstâncias gerais dos casos não o exigem.

O Gabinete do Provedor de Direitos Humanos e Justiça salientou recentemente as condições terríveis em que as pessoas são mantidas em prisão preventiva no nosso país. E vimos o que pode acontecer nestas circunstâncias com a perda da vida de um jovem em detenção por incompetência ou pior. Permitam-me repetir: a detenção preventiva não é a norma e não é obrigatória em todos os casos. A detenção preventiva é de facto o último recurso, quando não existe claramente outra opção disponível para proteger a integridade de uma investigação.

A detenção preventiva e as penas de prisão refletem a necessidade de as comunidades impedirem a continuação do crime e de reabilitarem os infratores. Isto não deve ser confundido com o desejo de sangue público, como acontece frequentemente em casos que são debatidos nos meios de comunicação social. Os tribunais devem sempre ignorar os meios de comunicação social e o debate público quando têm de decidir se devem deter pessoas durante uma investigação, ou quando as condenam e impõem penas. Princípios como a presunção de inocência, a legalidade, a separação de poderes e a reabilitação são aquilo em que os Tribunais devem basear as suas decisões.

Se os meios de comunicação social ou outros pensam que certas pessoas acusadas ou consideradas culpadas de crimes devem ser severamente punidas, nunca é relevante para a aplicação dos princípios legais.

Falando de princípios legais, é importante notar que quando advogados e juízes aplicam princípios legais a um caso particular, devem fazer mais do que simplesmente cortar e colar material de outro caso, lei ou país. Esta prática não é a aplicação de princípios jurídicos a um conjunto particular de factos ou casos, mas simplesmente uma espécie de preguiça intelectual que é demasiado predominante no nosso sistema de justiça.

Os advogados e juízes devem ler, pensar e escrever sobre as questões que lhes são apresentadas, e não apenas copiar e colar de outro lugar.

Será que Avô Xavier, Nicolau Lobato e o Avô Nana criaram um Estado para que as pessoas pudessem ser detidas sem julgamento, em prisões superlotadas, indefinidamente, devido ao medo de críticas dos meios de comunicação social, à recusa de olhar para opções não privativas de liberdade e a procedimentos ineficientes de investigação antes do julgamento? Criámos um Estado para que advogados e juízes simplesmente copiassem e colassem material de outros casos, em vez de considerarem devidamente as circunstâncias de cada caso e de cada lei?

Irei agora abordar algumas preocupações no que diz respeito às políticas em matéria de drogas. Durante muitos anos, entre várias outras atividades, tive a honra de servir com o falecido Kofi Annan e muitas outras personalidades eminentes como Comissário da Comissão Global sobre Política de Drogas. O debate em torno da política de drogas em Timor-Leste tem sido mal informado e depende de preconceitos herdados do passado. Está desfasado da situação e da realidade em muitos outros países.

Se Timor-Leste legalizasse a marijuana medicinal e aproveitasse proativamente as mudanças ocorridas em todo o mundo em relação à política em matéria de drogas, poderíamos colher benefícios económicos e sociais. As nossas leis atuais em relação à canábis negam a Timor-Leste muitos benefícios: marijuana medicinal, rendimentos dos agricultores, impostos, turismo.

O nosso atual sistema legal e judicial deixa muito a desejar. Algumas das nossas leis são utilizadas de formas que causam erros por parte dos funcionários públicos. Ao mesmo tempo, estes casos levam as pessoas a todos os níveis do nosso governo a temer e a evitar tomar decisões em benefício do nosso povo. O resultado não é a corrupção crescente no Governo, mas uma inércia cimentada.

Precisamos de distinguir entre erros, urgência, erro administrativo e corrupção. Rotular cada erro de um funcionário público ou de um Ministro como corrupção não é justiça, mas o nosso sistema jurídico parece confundir continuamente estas coisas.

A situação contribui para o atraso na prestação de serviços públicos. Diariamente, os funcionários públicos, desde os níveis mais baixos aos mais altos, mesmo os Ministros, mostram-se relutantes em tomar decisões ou agir em prol do interesse público porque receiam cometer erros que os possam levar a ser acusados de corrupção. Esta inércia governamental é um dos aspetos que trava o desenvolvimento do país e a prestação de serviços aos nossos cidadãos, convidados e investidores.

Não devemos fazer vista grossa à corrupção, mas devemos colocar as coisas no seu contexto e circunstâncias adequadas. Devemos tratar cada caso, individualmente, pelo que ele realmente é. A preguiça intelectual nunca é justiça. Será, por exemplo, uma decisão ao mais alto nível, de providenciar urgentemente camas hospitalares, seja de que fonte for, e tenha ou não havido falhas, um verdadeiro caso de corrupção merecedor da pena máxima disponível nos termos da lei?

As penas máximas estabelecidas por lei são para os casos mais graves e não para o que pode muito bem ser um erro administrativo. A lei é um instrumento contundente e injusto, a menos que seja temperado com misericórdia e razão. Temos de deixar de aplicar as leis como se fossem dispositivos mecânicos onde o Y deve sempre seguir Y sem qualquer espaço de pensamento e contexto. Prender toda e qualquer pessoa que cometa um erro administrativo não irá melhorar o nosso sistema de governação.

A justiça atrasada é a justiça negada. Investigadores, polícia, advogados, procuradores, defensores públicos e juízes são todos responsáveis quando os casos demoram anos e anos a serem resolvidos. A dúvida não resolvida paira sobre a cabeça dos nossos cidadãos e condena-os frequentemente sem julgamento. Esperar infinitamente durante dez anos ou mais para que os tribunais tomem uma decisão final não é justiça.

Como é que o nosso sistema jurídico pode chegar a decisões que mais tarde se descobriu conterem quase uma centena de motivos de dúvida e erro? Como é que o nosso sistema jurídico pode acumular tantos erros aparentes num caso? Como é que os Tribunais podem tomar decisões que não respondem aos requisitos legais e factuais de um caso? Como é que os Tribunais parecem tomar decisões baseadas, não na lei, mas no que os meios de comunicação social ou alguns outros exigem? Mais uma vez os investigadores, polícia, advogados, procuradores, defensores públicos e juízes são todos responsáveis quando tais erros e dúvidas pairam sobre as decisões dos nossos Tribunais. Tais erros em nada contribuem para construir e manter a fé no sistema jurídico do nosso país. Como podemos alguma vez esperar desenvolver o nosso país quando os investidores e outros não têm fé no nosso sistema de justiça?

Neste dia, o Presidente concede tradicionalmente perdões às pessoas nas nossas prisões que tenham sido condenadas por crimes. O perdão é uma decisão presidencial que permite a uma pessoa ser libertada de algumas ou de todas as consequências legais resultantes de uma condenação criminal. Os perdões são por vezes vistos como um mecanismo de combate à corrupção, permitindo a uma determinada autoridade contornar um processo judicial imperfeito, para libertar alguém que é visto como condenado injustamente. Em qualquer caso, a concessão de um perdão é um mecanismo vital de misericórdia e clemência, temperando os efeitos duros, ou injustos, do nosso sistema jurídico penal.

Hoje, sem controvérsia, concedo perdões a 6 pessoas, tal como estabelecido no Decreto Presidencial a ser publicado, de acordo com a lei.

Contudo, há alguns casos em que eu gostaria de ter concedido perdões, mas pelos quais, para evitar confrontos, decidi esperar. Há outros casos em que eu poderia ter considerado conceder perdões, mas não o pude fazer devido a problemas com a administração do processo. O facto é que nem todos os pedidos de indultos apresentados foram entregues no meu gabinete para processamento. Seja qual for a razão, devemos lembrar que estamos a lidar com a vida das pessoas e que o atraso administrativo não é uma desculpa.

Deixem-me esclarecer, a secção 85 i) da Constituição torna claro que cabe exclusivamente ao Presidente da República conceder perdões e comutar sentenças. Sim, é verdade que a Constituição exige que o Presidente deve ouvir e consultar o Governo. Mas nem o Governo nem o Parlamento podem restringir ou confinar o exercício deste poder constitucional.

No entanto, é isto que o Parlamento pretendeu fazer. o Artigo 4 da Lei do Perdão (LEI Nº. 5/2016 de 25 de Maio Procedimento de Concessão de Indultos e Comutação de Sentença) restringe, a meu ver, inconstitucionalmente, o poder exclusivo do Presidente ao excluir certos tipos de crimes do poder de indulto. Esta lei limita ilegalmente o poder constitucional do Presidente para conceder indultos. Na sua forma atual, a lei pode conduzir a alguns resultados absurdos.

Por exemplo, estudos de todo o mundo dizem-nos que 75% das mulheres na prisão sofreram de violência física grave por parte de pessoas próximas. 82% das mulheres na prisão foram gravemente abusadas física ou sexualmente quando crianças. E 94% sofreram abusos físicos ou sexuais durante as suas vidas. Ao mesmo tempo, sabemos que a maioria das mulheres encarceradas em Timor-Leste (85%) estão presas por crimes de homicídio, violência ou vários tipos de abuso sexual.

Deverá ser negado o direito ao perdão a uma mulher que respondeu a anos de violência doméstica, agredindo ou mesmo matando o seu marido abusivo? Não deveria a sua situação e o contexto do próprio crime ter levado o Tribunal a decidir não a prender em primeiro lugar? Ou pelo menos ter uma sentença que tenha em conta os factos e o contexto? Mas a lei atual, tal como está, é inconstitucional e restringe o poder do Presidente para conceder um perdão em tal caso.

O Governo e o Parlamento precisam de alinhar a lei atual com a Constituição. Se assim não for, terei de considerar que medidas devo tomar para remediar a situação pessoalmente. Por ocasião do 48º aniversário da Declaração de Independência, espero que o exercício do poder constitucional do Presidente possa ser exercido livremente e sem controvérsia ou confronto.

A nossa nação nasceu de uma luta, fundada em valores que procuravam assegurar que a aplicação das leis é feita com equidade, com misericórdia e com razão. Não o fazer não respeita e honra o legado daqueles que lutaram por esta nação e pela justiça. Não o fazer não respeita a missão especial e a vocação do povo timorense no mundo.

A soberania não é alcançada através da substituição de um sistema jurídico estrangeiro imperfeito por um sistema igualmente imperfeito nacional. Isto não é soberania, e não é justiça, nem democracia.

O nosso atual sistema jurídico e judicial deixa muito a desejar. Para honrar aqueles que lutaram pela nossa nação, temos de fazer melhor.

Desejo felicitar cada cidadão e cada convidado no nosso país, e honrar a sua contínua contribuição para a construção da nossa nação e a nossa missão e vocação muito especial.

Como sabemos, a tarefa não é fácil. Todos nós cometemos erros, e todos nós beneficiamos da visão a posteriori que se segue aos nossos erros. Devemos estar sempre atentos e procurar evitar transformar os erros em algo que eles não são, ou seja, em crimes.

A nossa tarefa é complexa, mas que seria mais leve se todos os líderes e decisores trabalhassem em conjunto, em cooperação e com os valores e o espírito sobre os quais Avô Xavier e Nicolau Lobato fundaram, faz hoje 47 anos, a nossa independência.

Que Deus Todo-Poderoso e Misericordioso nos abençoe a todos.

José Ramos-Horta

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